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Médica em Construção

Nem tudo mau é realmente mau

Queria fazer um texto bonito sobre o quão difícil a vida pode ser, e sobre aquilo que podemos aprender com as adversidades, mas não consegui. Escrevi, apaguei, voltei a escrever, voltei a apagar. Não há nada de bonito no sofrimento. Nem tem de haver. 

Este último ano foi o transbordar de um copo cheio: cheio de traumas, medos, crenças infundadas, inseguranças. E quando o copo transborda, não podemos culpar apenas a gota de água, mas sim todo o conteúdo esquecido, deixado por tratar. E é infelizmente apenas quando o copo transborda que nos preocupamos em resolver aquilo que durante tanto tempo deixamos para trás. Não, o tempo não cura tudo. Acreditar nisso foi o meu maior erro. O tempo apenas permite que o trauma crie raízes e abrace o nosso futuro.

Sem o transbordar o copo, não estaria como estou neste momento. Permaneceria a pessoa assustada, pequena, pessimista, que durante toda a minha vida fui. E por isso, por muito difícil que tenha sido este último ano, não podia estar mais grata por tudo o que aconteceu.

Se estão na dúvida, este é o vosso sinal: procurem ajuda. 

O senhor da cama quatro

Era como o meu avô.

Tinha um cuidado especial com as palavras, e uma atenção ao detalhe excecional ao contar histórias.

Falou-nos do carbúnculo, da sua aldeia, e da vida que levou. Procurava em nós uns ouvidos dispostos a escutar os tramas, as suas paixões, e a forma poética como sempre encarou a vida.

“A vida tem destes romances” dizia ele. E foi aí que descobri a alma de artista que nem o tempo nem a doença conseguiram escurecer ou apagar.

E é isto que amo naquilo que faço. Não só conhecer as doenças, mas principalmente conhecer as pessoas. As pessoas que não deixam de ser pessoas por se encontrarem numa enfermaria, e que não se deixam condenar por uma doença.

Dia Mundial do Lúpus - 10 de maio

Ontem foi o dia mundial do lúpus, e não poderia deixar de falar desta doença, não só pela importância que tem para mim, mas também pelo impacto que tem na vida das 5 milhões de pessoas que lidam com a mesma por todo o mundo.

Para quem não conhece, lúpus é uma doença que leva a uma resposta inflamatória contra os tecidos do doente, ou seja, uma doença auto-imune. 90% dos afetados são do sexo feminino e em idade fértil. Os sintomas mais comuns são a fadiga, dores articulares, febre inexplicável, e o tão típico vermelhão na face em forma de borboleta; e é por mimetizar tantas outras doenças que é de tão difícil diagnóstico. Além disto, pode afetar diversos órgãos e sistemas do nosso corpo, como a pele, as articulações, os rins, os pulmões, o coração, e até o sistema nervoso.

A minha jornada com o lúpus começou muito cedo. Numa noite, apenas com 4 anos, vi uma nódoa negra numa perna que me levou às urgências hospitalares. Nessa altura, fui diagnosticada com púrpura trombocitopenica idiopática - uma doença auto-imune que leva à destruição das minhas plaquetas sanguíneas (as responsáveis por formar um “tampão” e interromper o fluxo sanguíneo quando há alguma lesão). Desde então, fui seguida em consultas de rotina. Como cresci com este problema, nunca senti que me limitasse: aliás, não me lembro de viver sem ele. Apenas tinha de ter mais cuidado a brincar, para garantir que não me magoava.

Passado uns anos, comecei a ter algumas dores nas articulações, que colocaram a minha médica em alerta. Com alguns exames, foi fácil de entender que tinha, ou viria a desenvolver, lúpus. Com 10 anos de idade, não entendia grande coisa, muito menos as implicações deste diagnóstico. Porém, à medida que fui crescendo, fui me apercebendo da forma como esta doença podia afetar a minha qualidade de vida.

Nunca tive grandes complicações nem grandes sintomas. Apesar disso, ainda na escola, receei muito pelo futuro. Cada consulta médica era uma tortura: pensava sempre que seria daquela vez que receberia más notícias. É a incerteza que assusta. E quanto mais aprendi sobre a doença, mais atenta fiquei aos sintomas e, consequentemente, mais preocupada. Seria na próxima consulta que descobriria que teria de aumentar a medicação? Ou de fazer uma biópsia renal?

No entanto, o tempo e a maturidade ajudam. São os nossos melhores amigos. Apesar da sorte de ser diagnosticada cedo, e da ausência de sintomas e crises, tive de aprender a lidar mais tarde com a doença e, acima de tudo, com todo o stress e problemas que traz para a nossa vida.

O problema do Dr. Google - cibercondria

É fantástico termos informação na ponta dos nossos dedos. Com apenas um clique, acedemos a milhares de websites que nos ajudam a ser pessoas mais informadas, algo que no passado era impensável. E isto aplica-se a tudo: notícias, ciência, política, e também saúde.

Não me interpretem mal, é muito vantajoso! Há a partilha e o incentivo de comportamentos saudáveis, dos benefícios e malefícios de certos alimentos, medicações, e entre muitas mais coisas. É um universo!

O problema começa quando se utiliza a internet para avaliar sintomas e fazer autodiagnósticos. Todos nós, em algum momento da nossa vida, pesquisamos algum sintoma (como uma simples dor de cabeça), e ficamos aterrorizados com os possíveis diagnósticos que o Dr. Google propõe. É um meningite, um abcesso cerebral, um tumor! Este é um comportamento que induz ansiedade e que, muitas vezes, se torna compulsivo.

Assim, foi definido o termo cibercondria: trata-se de uma pesquisa repetida sobre assuntos relacionados com a saúde que estão associados a um aumento da hipocondria (preocupação geral relativamente às doenças). Apesar da ansiedade e perturbação que estas pesquisas trazem, o indivíduo continua compulsivamente a fazê-las. Isto é especialmente relevante em indivíduos que já apresentem um quadro de hipocondria.

Além disto, é já muito comentado pelos médicos que muitos pacientes chegam à consulta com o diagnóstico feito, procurando apenas a medicação ou exames.

É importante relembrar que apenas um médico pode fazer um diagnóstico - o google, por muita informação relevante que nos dê, não substitui todos os anos de estudo de um profissional de saúde. É necessário ter pensamento crítico, experiência e exames de diagnóstico, algo que um site na internet não nos consegue oferecer. É de acrescentar que estes indivíduos acabam muitas vezes em sites pouco fidedignos, que até lhes sugerem curas e tratamentos falsos e enganadores.

O que pensam relativamente a este tópico?

Costumam pesquisar os vossos sintomas na internet?

Urgências respiratórias e solidão

Não me é desconhecida a posição de doente no hospital. Foram inúmeras as vezes, desde muito cedo, que permaneci naquele edifício enfraquecida pela doença. Apesar de tudo, não pensei que entraria tão cedo num espaço onde, há tão pouco tempo, havia entrado como aprendiz.

Comecei a semana com alguns sintomas respiratórios. Nada muito severo, mas o suficiente para me deixar em casa e com indicação de um PCR. Covid, nem vê-lo. Apesar de todos os cuidados, o meu quadro piorava, e por prevenção decidi fazer uma visita às urgências. Não esperei muito até ser encaminhada da triagem para as Urgências Respiratórias, onde permaneci o resto da estadia.

Como já mencionei, não era a primeira vez que lá entrava; já havia colhido histórias de pacientes naquele local. Sabia que era um local que impunha respeito, que nos relembrava da efemeridade e fragilidade da vida. No entanto, entrar como paciente traz uma carga emocional completamente distinta. Era eu que estava doente, vulnerável, na mão de desconhecidos. Apesar de conhecer a casa, os procedimentos, e os possíveis tratamentos, encontrava-me bastante assustada; levou-me apenas a imaginar o sentimento daqueles que não tinham tal vantagem.

Passaram-se horas e horas, e permanecia sentada num cadeirão, à espera dos resultados das análises que nunca mais chegavam. E a falta de companhia era dolorosa. Já sentia o impulso de me erguer e colher histórias aos meus vizinhos, nem que fosse apenas para me distrair.

No final foi me prescrito um antibiótico pela doutora que, sempre com tato e simpatia, me acompanhou e me explicou cada passo do processo.

Acho que retirei bastante desta experiência. Ensinou-me o que é estar sozinha num internamento, e ensinou-me da fragilidade que tal causa. Uma doença aguda, por muito leve que seja, representa um corte súbito na continuidade da nossa vida, e queremos apenas que alguém nos garanta que tudo voltará ao normal.

Síndrome do estudante de medicina

Vocês já ouviram falar da síndrome do estudante de medicina? Esta afeta estudantes de medicina pouco experientes, que desenvolvem um medo patológico de contrair as doenças que estudam. São mais comuns em estudantes que já tenham alguma predisposição para ansiedade e medos irracionais, mas podem afetar qualquer um.

Este quadro pode-se manifestar como nosofobia ou hipocondria. Nosofobia é o medo irracional de ter uma doença específica, mesmo sem sintomas que sugiram a sua presença. Já na hipocondria há uma má interpretação de sinais corporais, que leva o doente a acreditar que simples sintomas indicam que sofre de uma doença grave.

O grande problema é o conhecimento: conhecer os sintomas, as consequências, o prognóstico. Conhecer a doença ao pormenor dá-lhe vida. Não é necessário pesquisar no Doutor Google para recear, mas sim apenas assistir a aulas ou até estudar para um exame.

E é claro que eu não podia ser a exceção.

Demoraria horas se descrevesse neste post todos os medos e todas as doenças que pensei e receei ter. Acho que os detalhes não são realmente o importante, mas sim o impacto destes medos na minha vida, que se transformaram em noites mal dormidas, ataques de ansiedade e várias idas ao médico e às urgências. O mais frustrante é saber que tudo é irracional e ilógico, mas, mesmo assim, não conseguir afastar o sentimento persistente de que havia algo de errado. Enfim, é um ciclo difícil de quebrar, que inevitavelmente afetou a minha felicidade e o meu rendimento escolar.

Não obstante, não posso dizer que esta experiência foi apenas negativa. É sempre possível retirar lições e aprendizados mesmo das situações mais incómodas. Por um lado, sinto que me compreendo melhor, principalmente devido ao acompanhamento que tive para superar este percalço. Isto ensinou-me a desvalorizar outras situações que no passado me causavam tanta ansiedade e medo e que, agora, me parecem insignificantes (claro, pensar que temos várias doenças mortais durante meio ano afeta a forma como vemos o mundo!). Por outro lado, sinto também mais empatia para com os doentes com que me cruzo, pois entendo não só a doença mas também as implicações que esta tem nas suas vidas.

E vocês, já tiveram algum medo irracional?

Beijinhos e até ao próximo post!

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